quinta-feira, 2 de junho de 2011

10- FICHAMENTO DE GENÉTICA

Um caso de discriminação genética: o traço falciforme no Brasil

O último século foi marcado pelo avanço de pesquisas no campo da Genética Clínica e mais recentemente pelas descobertas do Projeto Genoma Humano. Muitas doenças e marcadores genéticos foram identificados, embora se tenha avançado pouco em relação à cura ou à terapia gênica. A anemia falciforme, uma doença que altera as hemoglobinas e dificulta o transporte de oxigênio pelo organismo, foi identificada pelo médico James Herrick, em 1910, e descrita por biologia molecular nos anos. As pessoas com anemia falciforme são aquelas cujo sistema circulatório apresenta dificuldades para transportar o oxigênio, visto que possuem um tipo diferenciado de hemoglobinas, as "hemoglobinas do tipo S", e necessitam acompanhamento médico sistemático para a redução da morbidade e melhoria na qualidade e expectativa de vida. A doença pode provocar desde alterações leves, como palidez, até distúrbios mais severos, como acidente vascular cerebral ou mesmo a morte. Considerando que a anemia falciforme afeta as hemoglobinas, a doença é também conhecida como um tipo de hemoglobinopatia. As hemoglobinas consideradas normais são as "hemoglobinas do tipo A", que transportam adequadamente o oxigênio. Entretanto, no caso das "hemoglobinas do tipo S", responsáveis pela anemia falciforme, o transporte de oxigênio é prejudicado devido ao formato das hemácias e de condições ambientais adversas, como elevadas altitudes, ausência de oxigênio ou mesmo mudanças climáticas. Porém, o mesmo não ocorre no caso de pessoas que têm "hemoglobinas do tipo AS" ou "traço falciforme", características genéticas que não representam restrições ao metabolismo, morbidade ou mesmo riscos à vida, tal como ocorre no caso da anemia falciforme. Sendo assim, há uma diferença entre a doença anemia falciforme e o traço falciforme, uma característica genética sem maiores repercussões no metabolismo. Vale reforçar que o traço falciforme não se confunde com a anemia falciforme: o traço não é uma doença, apenas indica a presença da "hemoglobina S" em combinação com a "hemoglobina A", o que resulta na "hemoglobina do tipo AS" . Um casal com traço falciforme tem 25% de chances de ter um futuro filho com anemia falciforme que no Brasil  é uma das características genéticas mais prevalentes na população. Em 2001, estudos de prevalência indicavam a existência de mais de dois milhões de portadores heterozigóticos de genes falciformes e oito mil portadores da anemia falciforme. Embora presente em pessoas com diferentes cores, há maior prevalência do traço e da anemia falciformes entre a população preta e parda no país, o que representa um recorte também de classe para a doença Os pretos e pardos estão dentre os grupos mais pobres da população. Dada a prevalência do traço falciforme na população brasileira, ações educativas sobre planejamento familiar foram implementadas pelo governo brasileiro na última década. Os portadores de traço falciforme e seus familiares são o público–alvo das iniciativas de saúde pública do Ministério da Saúde: de campanhas educativas a oferta de serviços de aconselhamento genético na rede pública de saúde; de triagem neonatal para a anemia falciforme a informações sobre planejamento reprodutivo. No Brasil, a testagem para identificação de pessoas portadoras de traço e doenças falciformes tem sido uma prática bastante difundida em diferentes espaços dos serviços de saúde públicaO levantamento de dados foi realizado por meio de entrevistas semi–estruturadas com os principais protagonistas do caso: a atleta, o técnico do clube onde a atleta jogava e o médico responsável pelo parecer clínico que questionou a exclusão da atleta da seleção. Foi também realizado um levantamento documental da repercussão do caso na imprensa nacional, no período de abril a maio de 2004. As declarações dos informantes–chave na imprensa guiaram o roteiro para as entrevistas semi–estruturadas, cujo objetivo foi recuperar os principais fatos envolvidos no caso. A análise considerou ainda o relatório médico emitido pela CBV sobre o traço falciforme identificado na atleta e pareceres técnicos emitidos pela Secretaria de Saúde do Estado do Rio de Janeiro. A descrição do caso foi resultado das entrevistas, da análise documental do processo e das matérias da mídia impressa. Há um consenso médico de que pessoas com anemia falciforme apresentam restrições à prática de esportes. As pessoas com anemia falciforme devem ter cuidado com atividades que exigem esforço físico, pois é uma doença que afeta as hemoglobinas e conseqüentemente dificulta o transporte de oxigênio. Mas traço e anemia falciformes não se confundem no espectro dos marcadores genéticos qualificados como doenças. No caso do traço falciforme, a prática do esporte não é uma contra–indicação, pois segundo o órgão de saúde do governo estadunidense, "o traço falciforme não impede a participação em esportes competitivos [...] trabalhos científicos mostram que não há aumento de morbidade ou mortalidade entre atletas profissionais com o traço" . O manual do NIH conclui que são desnecessários exames para identificação de traço falciforme entre atletas: "não há necessidade de triagem para o traço falciforme como requisito à participação em programas esportivos". Nas considerações finais constatamos que O caso analisado neste artigo mostra que a adoção de testes genéticos para o traço falciforme no campo das práticas esportivas é contestável como uma medida de proteção em saúde, e abre espaço para o estigma e a discriminação genética. A discriminação ocorre porque à informação genética obtida por meio dos testes é conferida autoridade e poder de confabular prognósticos que não se baseiam em evidências e implicam restrições de direitos ou mecanismos de opressão social. No caso da atleta, a identificação do traço falciforme impediu a participação na competição e foi seguida de recomendação para que as escolhas profissionais fossem revistas. Os casos envolvendo a entidade de elite do voleibol demonstram a importância de se enfrentar seriamente a informação genética como um tema na interface dos direitos individuais e da saúde pública no Brasil.

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