Um caso de discriminação genética: o traço falciforme no Brasil
O último século foi marcado pelo avanço de pesquisas no campo da Genética Clínica e mais recentemente pelas descobertas do Projeto Genoma Humano. Muitas doenças e marcadores genéticos foram identificados, embora se tenha avançado pouco em relação à cura ou à terapia gênica. A anemia falciforme, uma doença que altera as hemoglobinas e dificulta o transporte de oxigênio pelo organismo, foi identificada pelo médico James Herrick, em 1910, e descrita por biologia molecular nos anos. As pessoas com anemia falciforme são aquelas cujo sistema circulatório apresenta dificuldades para transportar o oxigênio, visto que possuem um tipo diferenciado de hemoglobinas, as "hemoglobinas do tipo S", e necessitam acompanhamento médico sistemático para a redução da morbidade e melhoria na qualidade e expectativa de vida. A doença pode provocar desde alterações leves, como palidez, até distúrbios mais severos, como acidente vascular cerebral ou mesmo a morte. Considerando que a anemia falciforme afeta as hemoglobinas, a doença é também conhecida como um tipo de hemoglobinopatia. As hemoglobinas consideradas normais são as "hemoglobinas do tipo A", que transportam adequadamente o oxigênio. Entretanto, no caso das "hemoglobinas do tipo S", responsáveis pela anemia falciforme, o transporte de oxigênio é prejudicado devido ao formato das hemácias e de condições ambientais adversas, como elevadas altitudes, ausência de oxigênio ou mesmo mudanças climáticas. Porém, o mesmo não ocorre no caso de pessoas que têm "hemoglobinas do tipo AS" ou "traço falciforme", características genéticas que não representam restrições ao metabolismo, morbidade ou mesmo riscos à vida, tal como ocorre no caso da anemia falciforme. Sendo assim, há uma diferença entre a doença anemia falciforme e o traço falciforme, uma característica genética sem maiores repercussões no metabolismo. Vale reforçar que o traço falciforme não se confunde com a anemia falciforme: o traço não é uma doença, apenas indica a presença da "hemoglobina S" em combinação com a "hemoglobina A", o que resulta na "hemoglobina do tipo AS" . Um casal com traço falciforme tem 25% de chances de ter um futuro filho com anemia falciforme que no Brasil é uma das características genéticas mais prevalentes na população. Em 2001, estudos de prevalência indicavam a existência de mais de dois milhões de portadores heterozigóticos de genes falciformes e oito mil portadores da anemia falciforme. Embora presente em pessoas com diferentes cores, há maior prevalência do traço e da anemia falciformes entre a população preta e parda no país, o que representa um recorte também de classe para a doença Os pretos e pardos estão dentre os grupos mais pobres da população. Dada a prevalência do traço falciforme na população brasileira, ações educativas sobre planejamento familiar foram implementadas pelo governo brasileiro na última década. Os portadores de traço falciforme e seus familiares são o público–alvo das iniciativas de saúde pública do Ministério da Saúde: de campanhas educativas a oferta de serviços de aconselhamento genético na rede pública de saúde; de triagem neonatal para a anemia falciforme a informações sobre planejamento reprodutivo. No Brasil, a testagem para identificação de pessoas portadoras de traço e doenças falciformes tem sido uma prática bastante difundida em diferentes espaços dos serviços de saúde pública. O levantamento de dados foi realizado por meio de entrevistas semi–estruturadas com os principais protagonistas do caso: a atleta, o técnico do clube onde a atleta jogava e o médico responsável pelo parecer clínico que questionou a exclusão da atleta da seleção. Foi também realizado um levantamento documental da repercussão do caso na imprensa nacional, no período de abril a maio de 2004. As declarações dos informantes–chave na imprensa guiaram o roteiro para as entrevistas semi–estruturadas, cujo objetivo foi recuperar os principais fatos envolvidos no caso. A análise considerou ainda o relatório médico emitido pela CBV sobre o traço falciforme identificado na atleta e pareceres técnicos emitidos pela Secretaria de Saúde do Estado do Rio de Janeiro. A descrição do caso foi resultado das entrevistas, da análise documental do processo e das matérias da mídia impressa. Há um consenso médico de que pessoas com anemia falciforme apresentam restrições à prática de esportes. As pessoas com anemia falciforme devem ter cuidado com atividades que exigem esforço físico, pois é uma doença que afeta as hemoglobinas e conseqüentemente dificulta o transporte de oxigênio. Mas traço e anemia falciformes não se confundem no espectro dos marcadores genéticos qualificados como doenças. No caso do traço falciforme, a prática do esporte não é uma contra–indicação, pois segundo o órgão de saúde do governo estadunidense, "o traço falciforme não impede a participação em esportes competitivos [...] trabalhos científicos mostram que não há aumento de morbidade ou mortalidade entre atletas profissionais com o traço" . O manual do NIH conclui que são desnecessários exames para identificação de traço falciforme entre atletas: "não há necessidade de triagem para o traço falciforme como requisito à participação em programas esportivos". Nas considerações finais constatamos que O caso analisado neste artigo mostra que a adoção de testes genéticos para o traço falciforme no campo das práticas esportivas é contestável como uma medida de proteção em saúde, e abre espaço para o estigma e a discriminação genética. A discriminação ocorre porque à informação genética obtida por meio dos testes é conferida autoridade e poder de confabular prognósticos que não se baseiam em evidências e implicam restrições de direitos ou mecanismos de opressão social. No caso da atleta, a identificação do traço falciforme impediu a participação na competição e foi seguida de recomendação para que as escolhas profissionais fossem revistas. Os casos envolvendo a entidade de elite do voleibol demonstram a importância de se enfrentar seriamente a informação genética como um tema na interface dos direitos individuais e da saúde pública no Brasil.
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